HIPNOSE E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA LIDAR COM A DOR
A investigação clínica e experimental vem validando, através do uso da hipnose, seus efeitos para alterar o percepção sensorial do corpo e, com isso, trabalhar a dor física através da construção de estados corporais de conforto.
As estratégias hipnóticas vêm apresentando êxitos, não apenas no tratamento das dores emocionais e existenciais, como também das dores físicas decorrentes de várias circunstâncias, como traumas físicos, cirurgias, dores provenientes de quadros cancerígenos, etc.
As pesquisas experimentais mostram que o alívio da dor se deve a outros fatores que vão além do efeito placebo (meramente sugestivo) ou da redução da ansiedade decorrente de desconforto físico.
Em nosso texto, pretendemos elaborar as estratégias, processos e efeitos do uso da hipnose para minimizar os quadros de dores corporais.
O PROCESSO DA HIPNOSE E A RELAÇÃO COM A DOR
A hipnose é, essencialmente, uma estratégia que compartilha estímulos sugestivos (no caso de Erickson, estímulos indiretos) com um paciente, visando favorecer que ele se torne receptivo a acessar seus potenciais internos e, com eles, administrar as dificuldades, tanto psicológicas quanto fisiológicas.
Geralmente os seres humanos não estão conectados para perceberem o quanto os recursos que foram acumulados em sua história psicológica e física podem ser úteis, para gerar respostas que os auxiliem a lidar com as dificuldades que possam surgir.
Para a maioria das pessoas, a dor física, quando surge, é percebida como uma experiência imediata, que envolve em grande parte ou totalmente sua atenção, em um quadro angustiante de desconforto, com a menor possibilidade desse quadro ser controlado pela própria pessoa, sem uso de algum fator exógeno (algo externo) como, por exemplo, um remédio, ou a intervenção de algum profissional da saúde.
Porém, as experiências passadas de sua vida construíram, ainda que ele não tenha consciência disso, uma série de aprendizagens, associações, condicionamentos psicológicos e fisiológicos que podem ser usados através de um enquadre apropriado para controlar e até eliminar os quadros de dor. É aqui que se encaixa o processo clínico da Hipnose Ericksoniana.
Existem, por exemplo, memórias repletas de intensas associações emocionais que, quando acessadas, dentro de um estado de transe, podem direcionar a atenção da pessoa para tais informações e, como consequência, podem substituir os estímulos de dor.
Numa época da minha vida, eu estava com fascíte plantar, que fazia com que eu andasse de forma lenta exigindo, por causa da dor e das câimbras, que eu parasse de tempo em tempo.
Um dia, passeando com minha família, eu ouço alguém gritar: “Pega ladrão!”. Imediatamente, eu acessei, de forma espontânea, uma momento da minha vida em que eu era criança (tinha 7 anos) e um garoto mais velho roubou minha bicicleta. Na hora, minha família nem teve tempo de falar ou me segurar de alguma forma. Comecei a correr atrás do ladrão, numa velocidade incrível, passando por todos que estavam atrás dele, até finalmente alcançá-lo.
O que aconteceu nessa situação? Eu não estava afetado em minha locomoção, pela fascíte?
O acesso a uma informação interna, carregada de associações emocionais mais intensas que a dor que eu estava sentindo em meus pés (e acredite, as câimbras eram muito fortes), apreenderam minha atenção, modificando a condição sensório-perceptiva que eu acessei no momento, permitindo que eu conseguisse correr numa explosão e velocidade incrível.
Encontramos, no dia a dia, inúmeros exemplos de estímulos de dor diminuindo sua intensidade, ou sumindo totalmente, como consequência da apreensão de outro estímulo que apresente um nível de intensidade maior, substituindo o estímulo anterior.
Durante nossa história de vida, vivemos inúmeros momentos de substituição de estímulos, por outros mais intensos e tais informações acumuladas em nosso sistema interior, podem ser potencializados de forma intencional, para controlar quadros de desconforto físico.
CONSIDERAÇÕES REFERENTES AOS ESTÍMULOS DE DOR
Se por um lado, a dor é uma experiência imediata, em que convergem dados objetivos com percepções subjetivas conscientes, por outro lado, o seu quadro é muito influenciado por estímulos não conscientes, ou seja, um conjunto de informações que contribuem muito para seu quadro, de complicação e abrandamento, e interferem na experiência da dor.
A dor, como uma experiência, pode ser acompanhada, juntamente com as percepções conscientemente acessíveis, por todo tipo de sucesso, desconforto, prazeres, experiências significativas e associações emocionais que foram construídas ao longo da história de vida de uma pessoa.
Todas essas informações, podem ser associados, numa experiência imediata de dor, sem que pessoa conscientemente perceba, amplificando o sofrimento ou amenizando seu quadro, a tal ponto, que podemos dizer que extensão objetiva da dor pode ser o fator de menor peso na equação de dificuldades que a pessoa experiencia.
No trabalho da hipnose, ode-se dizer que a dor, não é um estímulo nocivo simples, mas sim um complexo (um conjunto) de informações onde parte do seu montante é criado pela dor física, mas outra parte (e as vezes uma parte muito maior) é criado por todo um conjunto de estímulos temporais, emocionais, cognitivos e motivacionais, que podem amplificar o desconforto sentido.
Considerando a dor como um complexo que une, em sua experiência, inúmeras informações do passado, estímulos presentes e expectativas futuras, o seu trabalho, envolve o reconhecimento e a reorganização dessas informações, que aqui iremos chamar de estímulos secundários.
São secundários por se unirem, por associação, à experiência da dor (que aqui vem de inúmeras questões objetivas que ocorrem no corpo físico) sendo a mesma, considerado o estímulo primário (dor física).
Dessa forma, o estímulo primário de dor (dor imediata física) será amplificada pela influência dos estímulos secundários de dor que são compostos por sofrimentos arquivados no passado ou expectativas de consequências mais danosas no futuro.
Vamos dar um exemplo. Digamos que eu martele o meu dedo. Temos aí um estímulo primário de dor, constituído de trauma em um dos dedos da mão (o polegar, para uma indicação mais precisa).
Esse estímulo pode ser ampliado, por lembranças de marteladas que dei em meu dedo, em que foi seguido de maiores consequências de desconforto (por exemplo, perder a unha como consequência da martelada).
Mas, tal estímulo primário pode também ser influenciado por uma expectativa danosa de sofrer mais no futuro (de eu ter medo de não conseguir participar de um importante campeonato de tênis de mesa, como uma impossibilidade de não conseguir segurar adequadamente a raquete).
Percebem? Tanto experiências passadas (marteladas no passado) como dores projetadas no futuro (medo de perder algo importante), podem e vão influenciar na dita “experiência imediata da dor”, nesse caso, aumentando o nível de sofrimento.
A dor, como experiência, varia em sua natureza e intensidade, por adquirir significações secundárias, que resultam em quase formas infinitas de experenciar e interpretar seu quadro.
Mas o que parece um problema na dor, acaba sendo uma solução dentro da estrutura da hipnose pois, sendo ela uma construção, que agrega informações do presente, do passado e de expectativas futuras, se interferirmos nessas informações, acessando outras informações carregadas de recursos ou reorganizando as mesmas para uma condição mais produtiva, iremos diretamente afetar a intensidade de dor, que pode diminuir ou desaparecer totalmente.
Dessa forma, um atributo vital de compreensão da dor é compreender ela como um complexo neuropsicossocial, caracterizada por várias compreensões que geram significações singulares para o processo de sofrer. E, para verificar isso, basta pedir para o paciente descrever sua dor e verificar as inúmeras adjetivações que ele usará, indicando, através do seu discurso, inúmeros caminhos para ser explorado, visando interferir em seus fatores secundários.
Estas diversas formas de viver e interpretar, através da descrição da experiência da dor são muito importantes para a intervenção da hipnose, pois as diversas qualidades que usa para descrever ela, servirão de informações para avaliarmos as informações implícitas que estão na base dessas expressões e perceber que informação(ões), que se estivessem presentes, reorganizariam esses sofrimentos implícitos.
Erickson recomendava que primeiro agíssemos nas informações secundárias da dor, as mais acessíveis, para depois agir em fatores secundários mais complexos ou mesmo no fator primário. Dizia ele que esse procedimento, por gerar transformações facilmente acessíveis, aumentava a abertura do cliente, que ele chamava de receptividade, assim como o aprofundamento do foco do mesmo, no processo, pela ampliação da confiança no tratamento.
Esse aumento de abertura e confiança, geravam fatores importantes, para o cliente mergulhar o foco em si mesmo, para que as futuras intervenções, encontrem um clima mais propício, para agir nos fatores secundários mais complexos assim como no fator primário, o estímulo objetivo de dor.
Complementa que as vezes só a intervenções secundárias são necessárias para atingir os objetivos de controlar o desconforto do quadro de dor.
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